Se uma parte confessa, não há necessidade de provas. Em 11 de abril de 2002, dias depois do frustrado golpe de Estado contra Hugo Chávez, o vice-almirante Víctor Ramírez Pérez, um dos organizadores da conspiração, declarou à cadeia Venevisión: "nós contávamos com um arma mortal: a mídia". Não mentiu. Os meios de comunicação desempenharam um papel fundamental na aventura golpista. E o seguiram tendo depois, ao incitar a greve petroleira de 2002-2003 e o referendo revogatório para tratar de destituir o presidente eleito em 2004.
Ante uma oposição partidária pulverizada, com lutas internas e péssima reputação, os meios de comunicação, principalmente os eletrônicos, assumiram o papel de organização ideológica dirigente da coligação antichavista, isto é, de suprapartido político. Os donos dos consórcios informativos e de entretenimento, seus criadores e publicitários elaboram plataformas políticas e campanhas, constroem o discurso para opor-se ao presidente, mobilizam a população contra Chávez e escolhem os líderes opositores.
São eles que decidem quais personagens aparecem ante a opinião pública como os representantes opositores. Basta apenas que seus noticiários e mesas de análise política os apresentem como tais, bloqueando o acesso à televisão e ao rádio dos que lhes são inconvenientes, ainda se pertençam a suas fileiras.
As grandes cadeias de televisão e suas audiências substituíram assim a clássica relação entre partidos, filiados e votantes, criando um novo modelo de representação política, não só à margem das instituições, mas em oposição a elas. Converteram-se numa verdadeira midiacracia, que ultrapassa, e muito, o papel tradicionalmente atribuído ao quarto poder.
Parte de sua estratégia consiste em fabricar uma Venezuela midiática existente nas telas de televisão e nos programas de rádio, sem conexão com a Venezuela real. Inventam um país virtual ao gosto dos medos e fantasias de seu auditório, cobrindo mentiras com a roupagem do discurso da verdade.
Qualquer um que tenha visto a televisão opositora na Venezuela pode constatar a enorme distância que há entre a realidade que se vive todos os dias nas ruas e os conteúdos que esses meios divulgam.
Não é exagero. Durante minha última viagem a esse país vi num desses programas uma mulher indignada, dizendo que sua nação era uma ditadura, que ali não havia democracia nem liberdade de expressão. A entrevistada acusou a Hugo Chávez de ser um agente do castro-comunismo, pior do que Adolfo Hitler, um gorila que deveria ser retirado de qualquer maneira do Palácio de Miraflores para libertar a pátria. No entanto, nem essa pessoa nem o canal de televisão sofreram represália pelo que ela disse.
Este confronto entre a midiacracia e a revolução bolivariana não existiu sempre. O triunfo eleitoral de Hugo Chávez em 1998 esteve estreitamente ligado à profunda decomposição e ao descrédito em que viviam tanto a classe política como as instituições governamentais. No processo de demolição das mediações políticas tradicionais e de crítica às administrações ineficientes desempenhou um papel nada desprezível Marcel Granier, diretor geral de RCTV (Rádio Caracas Televisão).
Quando em 1995, depois de sair da prisão, Hugo Chávez começou a fazer política aberta, a relação entre vários dos barões da mídia e o tenente-coronel era cordial e amistosa. O diretor do El Nacional o hospedou em sua casa, ao mesmo tempo em que imprensa, rádio e televisão não regatearam em abrir-lhe espaços. Esta lua de mel terminou, no entanto, no início do processo de transformação impulsionado pelo presidente. A abolição de poderes acordada pela Assembléia Constituinte, a instauração da quinta república, a reforma agrária e a redistribuição da renda do petróleo para a população mais necessitada provocaram o rompimento.
Com amargura e desespero, a midiacracia descobriu que o presidente não era um títere que pudesse manejar. E começou a disparar contra ele cargas de artilharia, construindo a caricatura de Hugo Chávez que se difunde por todo o mundo. Em lugar de recuar, o presidente dobrou a aposta. Dotado de uma eficaz capacidade para comunicar-se diretamente com os setores populares, denunciou a parcialidade da mídia. Simultaneamente empreendeu reformas legais para democratizar o acesso à informação e fomentou a criação de meios de comunicação alternativos.
A confrontação subiu de tom. Convictos de que a Venezuela é deles, os consórcios informativos tomaram como bandeira para proteger seus interesses particulares a liberdade de expressão e o direito à informação. Sua vocação oligárquica se encobriu com a roupagem das reivindicações universais.
A última batalha desta guerra - não a final - foi a decisão governamental de não renovar a concessão da RCTV. Trata-se de uma medida soberana que nada tem a ver com a liberdade de expressão. A emissora pode seguir transmitindo através de cabo e satélite. Seus integrantes podem seguir dizendo o que queiram, dentro do marco legal existente. O consórcio claramente não cumpriu com as normas básicas do interesse público. A radiodifusão é um bem gerido pelo Estado. Compete ao governo renovar ou não a concessão que regula seu uso. A concessão chegou a seu termo. A RCTV ficou sem ela. Ponto.
Não há porque criar tumulto. Confundir os interesses particulares da midiacracia com a liberdade de expressão e o direito à informação é uma empulhação. A informação é um bem público, não uma mercadoria. Os donos das estações de rádio e TV não são a liberdade de expressão; são, tão só, proprietários dos meios.
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