Artigo do economista e cientista político José Luis Fiori, publicado originalmente no Valor Econômico e reproduzido na íntegra no Portal Vermelho, e agora aqui [grifos e intertítulos meus].
Durante vinte um dias de bombardeio contínuo, Israel lançou 2.500 bombas sobre a Faixa de Gaza - um território de 380 km² e 1.500 milhão de habitantes - deixando 1.300 mortos e 5.500 feridos, do lado palestino, e 15 mortos, do lado militar israelita. A infra-estrutura do território foi destruída completamente, junto com milhares de casas e centenas de construções civis.
É provável que Israel tenha utilizado bombas de "fósforo branco" - proibidas pela legislação internacional com conseqüências imprevisíveis , no longo prazo, sobre a população civil, em particular a população infantil.
Quando diz que é provável que Israel tenha utilizado bombas de "fósforo branco", Fiori talvez ainda não tivesse acesso à informação de que fontes militares israelenses confirmaram ao jornal Maariv o uso dessas armas, “cujo uso está proibido em zonas povoadas segundo as convenções internacionais”.
Mas, não é só: Israel utilizou também urânio empobrecido – e, como o fósforo branco, proibido e cancerígeno.
E um novo tipo de arma testado pelos militares estadunidenses, conhecido como Explosivo de Metal Denso Inerte (DIME, pela sigla em inglês), que provoca mutilações terríveis.
E , segundo o Bourdoukan, os flechettes, uma arma desenvolvida pelos americanos (sempre eles): “Flechettes são dardos de metal com
Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, se declarou "horrorizado", depois de visitar o território bombardeado, e considerou "escandalosos e inaceitáveis" os ataques israelitas contra escolas e refúgios mantidos em Gaza, pelas Nações Unidas. Richard Falk, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos em Gaza, também declarou que, "depois de 18 meses de bloqueio ilegal de alimentos, remédios e combustível, Israel cometeu crimes de guerra e contra a humanidade, na sua última ofensiva contra os territórios palestinos. Crimes ainda mais graves porque 70% da população de Gaza tem menos de 18 anos."
Dentro de Israel, entretanto - com raras exceções - a população apoiou a operação militar do governo israelita. Mais do que isto, as pesquisas de opinião constataram que o apoio da população foi aumentando, na medida em que avançavam os bombardeios, até chegar à índices de 90%. E no final, na hora do cessar-fogo, metade desta população era favorável à continuação da ofensiva, até a reocupação de Gaza e a destruição do Hamas. (FSP, 24/01/09).
Seja como for, duas coisas chamam a atenção - de forma especial - nesta última guerra: a inclemência de Israel, e sua indiferença com relação às leis e às críticas da comunidade internacional. Duas posições tradicionais da política externa israelita, que têm se radicalizado cada vez mais, e são quase sempre explicadas como "escalada aos extremos" do próprio conflito.
Israel, um Estado religioso
Mas existe um aspecto desta história que quase não se menciona, ou então é colocado num segundo plano, como se as "visões sagradas" do mundo e da história fossem uma característica exclusiva dos países islâmicos.
Desde sua criação, em 1948, Israel se mantém sem uma constituição escrita, mas possui um sistema político com partidos competitivos e eleições periódicas, tem um sistema de governo parlamentarista segundo o modelo britânico e mantém um poder Judiciário autônomo. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, Israel é um Estado religioso, e grande parte de sua população e dos seus governantes tem uma visão teológica do seu passado e do seu lugar dentro da história da humanidade. Israel não tem uma religião oficial, mas é o único Estado judeu do mundo, e os judeus se consideram um só povo e uma só religião que nasce da revelação divina direta e não depende de uma decisão, ou de uma conversão individual: "Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis uma propriedade peculiar entre todos os povos. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa", Êxodo, 19, 5-6.
Além disto, o judaísmo estabelece normas e regras específicas e inquestionáveis que definem a vida cotidiana e comunitária do seu povo, que deve se manter fiel e seguir de forma incondicional as palavras do seu Deus, mantendo-se puros, isolados e distantes com relação aos demais povos e religiões: "não seguireis os estatutos das nações que eu expulso de diante de vós... eu Javé, vosso Deus, vos separei desses povos. Fareis distinção entre o animal puro e o impuro... não vos torneis vós mesmos imundos como animais, aves e tudo o que rasteja sobre a terra", Levítico, 20, 23-25.
Para os judeus, Israel é a continuação direta da história deste "povo escolhido", e por isto, a sua verdadeira legislação ou constituição são os próprios ensinamentos bíblicos. O Torá conta a história do povo judeu e é a lei divina, por isto não pode haver lei ou norma humana que seja superior ao que está dito e determinado nos textos bíblicos, onde também estão definidos os princípios que devem reger as relações de Israel com seus vizinhos e/ou com seus adversários.
Bíblia, armas atômicas e financiamento mundial
Em Israel não existe casamento civil, só a cerimônia rabínica, e os soldados israelenses prestam juramento com a Bíblia sobre o peito e com a arma na mão: "Javé ferirá todos os povos que combateram contra Jerusalém: ele fará apodrecer sua carne, enquanto estão ainda de pé, os seus olhos apodrecerão em suas órbitas, e a sua língua apodrecerá em sua boca", Zacarias, 14, 12-15.
As idéias religiosas dos povos não são responsáveis nem explicam necessariamente as instituições de um país e as decisões dos seus governantes. Mas neste caso, pelo menos, parece existir um fosso quase intransponível entre os princípios, instituições e objetivos da filosofia política democrática das cidades gregas, e os preceitos da filosofia religiosa monoteísta que nasceu nos desertos da Ásia Menor.
Mas o que talvez seja mais importante do ponto de vista imediato do conflito entre judeus e palestinos, e do próprio sistema mundial, é que Israel - ao contrário dos palestinos - junto com sua visão sagrada de si mesmo, dispõe de armas atômicas, e de acesso quase ilimitado a recursos financeiros e militares externos.
Com estas idéias e condições econômicas e militares, Israel seria considerado - normalmente - um Estado perigoso e desestabilizador do sistema internacional, pela régua liberal-democrática dos países anglo-saxônicos. Mas isto não acontece porque no mundo dos mortais, de fato, Israel foi uma criação e segue sendo um protetorado anglo-saxônico, que opera desde 1948, como instrumento ativo de defesa dos interesses estratégicos anglo-americanos, no Oriente Médio. Enquanto os anglo-americanos operam como a âncora passiva do "autismo internacional" e da "inclemência sagrada" de Israel.
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