Fernando de Barros e Silva é o nome dele, que é editor do Brasil, da Folha de S.Paulo. Em artigo publicado nesta terça de carnaval, ele é o primeiro jornalista a reagir ao sequestro da realidade que a mídia corporativa impõe ao país, na tentativa de vender uma realidade alternativa aos brasileiros. Eis a íntegra do artigo de Fernando:
Ditadura, por favor
Certamente não é a primeira vez que um colunista da casa diverge de uma posição expressa pelo jornal em editorial.
Mas é a primeira vez que este colunista se sente compelido a tornar pública sua discordância, inclusive em nome do que aprendeu durante 20 anos nesta Folha.
O mundo mudou um bocado, mas "ditabranda" é demais.
O argumento de que, comparada a outras instaladas na América Latina, a ditadura brasileira apresentou "níveis baixos de violência política e institucional" parece servir, hoje, para atenuar a percepção dos danos daquele regime de exceção, e não para compreendê-lo melhor.
O que pretende ser um avanço analítico parece, mais do que um erro, um sintoma de regressão.
Algumas matam mais, outras menos, mas toda ditadura é igualmente repugnante. Devemos agora contar cadáveres para medir níveis de afabilidade ou criar algum ranking entre regimes bárbaros?
Por essa lógica, chega-se à conclusão absurda de que o holocausto nazista não passou de um "genolight" perto do extermínio de 20 milhões promovido por Stálin.
Ora, se é verdade que o aparelho repressivo brasileiro produziu menos vítimas do que o chileno ou o argentino, isso se deu porque a esquerda armada daqui era menos organizada e foi mais facilmente dizimada, não porque nossos militares tenham sido "brandos".
Quando a tortura se transforma em política de Estado, como de fato ocorreu após o AI-5, o que se tem é a "ditadura escancarada", para falar como Elio Gaspari. Seria um equívoco de mau gosto associar qualquer tipo de "brandura" até mesmo ao que Gaspari chamou de "ditadura envergonhada", quando o regime, entre 64 e 68, ainda convivia com clarões de liberdade, circunscritos à cultura.
Brandos ou duros, o fato é que os regimes autoritários só mobilizam a indignação de grande parte da esquerda quando não vêm acompanhados da retórica igualitarista.
Muitos intelectuais se assanham agora com a tirania por etapas que Chávez vai impondo à Venezuela sob a gosma ideológica da revolução bolivariana. Isso para não lembrar o fascínio que o regime moribundo mas terrível de Fidel Castro ainda exerce sobre figurões e figurinhas da esquerda nativa.
É bem sintomático, aliás, que, ao protestar contra a "ditabranda" em carta à Folha, o professor Fábio Konder Comparato, guardião do "devido respeito à pessoa humana", tenha condenado os autores do neologismo a ficar "de joelhos em praça pública" para "pedir perdão ao povo brasileiro".
Que coisa. Era assim, obrigando suas vítimas a ajoelhar em praça pública, submetendo-as à autêntica "tortura chinesa", que a polícia política maoísta punia desvios ideológicos durante a Revolução Cultural. Quem sabe, como a "ditabranda", seja só um palpite infeliz.
Você pode até alegar que Fernando de Barros e Silva deu uma no cravo e várias na ferradura, ao atacar Chavez e Fidel, como o editorial, e ainda forçar a barra com uma interpretação literal do comentário de Comparato. Mas isso é acessório, o fundamental é que um jornalista disse Não, um jornalista ousou dar a cara a tapa e dizer que não endossa a falsificação histórica e autoindulgente que a Folha tenta impor a seus leitores.
Espero que não seja apenas o primeiro e único. Também vamos aguardar para ver o que o futuro lhe reserva, se a Folha é ditadura ou ditabranda. Na Globo, em 2006, o resultado foi a demissão do repórter Rodrigo Vianna, que criticara internamente a cobertura eleitoral imposta pelo aquário comandado por Kamel. Fernando de Barros e Silva deu um passo à frente ao expor sua discordância em público e no próprio veículo.
Que esse artigo seja o primeiro de uma série, escrito por jornalistas que não concordam com os caminhos do jornalismo impostos pela mídia corporativa - O Globo, Folha, Estadão, Rede Globo à frente.
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