A história parece ter esfriado – propositalmente esfriado – na mídia, mas não vou deixar passar batido: neste pé e segundo “critérios” no sentido de “popularizar” (a palavra não seria mediocrizar?), segundo a Folha de São Paulo, a ABL - Academia Brasileira de Letras -, em poucas décadas, vai se tornar um clubinho de mervais, pleno de chás e vesperais bucólico-edílico-estivais e dos mais porretas.
Eu poderia prosseguir neste tom humorístico assim indefinidamente, o texto ia ficar muito engraçado, hilário, resvalando entre o ridículo, o sarcasmo e a ironia – aliás, minhas especialidades –, mas não seria verdade porque desta vez fiquei indignada, raivosa, irada, putíssima da vida, e isto, ao invés de prejudicar-me a expressão, ao contrário favorece e muito porque - e aqui lembro uma frase do Raduan Nassar - no escritor é a emoção que comanda a razão, até porque ninguém conduz quem o demônio extravia, sobretudo quando é preciso soltar os cachorros, dar nomes aos bois, e dar nomes – dizer que as coisas têm nome, função e razão de ser – também continua sendo tarefa do escritor.
Antes invoco José Guilherme Merquior que observa num artigo(1) famoso: pode-se dizer que o meio século (dos anos 50 até nossos dias) tem sido para a intelligentsia latino-americana em geral, e para a classe literária em particular, a época da consolidação da autonomia do campo intelectual (Bourdieu), isto é, do fortalecimento de suas próprias instâncias de seleção e consagração. Ou seja, a legitimação da literatura deixou de proceder predominantemente dos centros de hegemonia social ou de estratégias de obtenção de status, para depender mais e mais de critérios intrinsecamente estéticos e intelectuais.
Em síntese, quem consagra, premia, reconhece um escritor são os outros escritores, seus pares.
Conversando ao telefone com um escritor carioca amigo, ele comentou que nesta eleição para a ABL, Antonio Torres (vinte e oito livros publicados, traduzido em várias línguas, o diabo) tivera 13 votos contra 25 do Merval Pereira (comentarista político global, dois livros?) e que a “pressão política em favor deste fora tremenda”.
Sem que ele tivesse me dito, salvo as obviedades de plantão (João Ubaldo, Lygia e Nélida), com os 40 nomes dos “imortais” à minha frente, fui “inferindo” os prováveis votantes de Torres (claro, com alguma margem de erro): Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony, Carlos Nejar, Nelson Pereira dos Santos (ok, também no lugar errado, mas deixa pra lá), Lêdo Ivo, Hélio Jaguaribe, Alfredo Bosi, Sérgio Paulo Rouanet, Lygia Fagundes Telles, Sábato Magaldi, Nélida Pinõn, Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro. E incrível: deu 13!Usei um método bastante simples: contei os escritores em geral, os artistas em particular e os intelectuais (críticos) em si.
Podem ter ajudado as eleições pregressas de pitanguys e sarneys, mas a “imortalidade” desse merval marca o ponto além do qual não há retorno – the point of no return – quanto ao apodrecimento e corrosão dos critérios e instâncias de consagração que (ainda) possa implicar a ABL. E desta para as “demais instituições democráticas” e “sociedade civil”, é um suspiro.
Possivelmente derradeiro.
PS: Aos 25 votantes do merval: vocês não têm vergonha?
(1)“Situação do Escritor” in América Latina em sua Literatura. S.Paulo, Perspectiva, 1979
Publicado originalmente no Congresso em Foco, onde você pode encontrar mais informações e textos de nossa escritora Márcia Denser.