'À Queima Roupa' é um documentário que não podemos deixar de ver. Pelo menos enquanto formos o que somos
Fui ontem à pré-estreia do documentário À Queima Roupa, dirigido por Theresa Jessouroun. O filme ganhou os prêmios de Melhor Direção e Melhor Documentário no Festival de Cinema do Rio 2014. Após o filme houve debate com a diretora e mais Julita Lemgruber, Ignacio Cano, Marcelo Freixo, Luiz Eduardo Soares e, embora não estivesse na mesa, o coronel PM Brum.
O filme conta parte da história da violência no Estado do Rio nos últimos 20 anos. Com imagens reais da época e outras ficcionadas, À Queima Roupa nos faz reviver (ou viver, tomar conhecimento, para os jovens que não haviam nascido ou eram muito jovens na época da primeira chacina do filme, a de Vigário Geral, quando 21 pessoas foram fria e barbaramente assassinadas por PMs) a sequência de assassinatos, procurando entender como e por que aconteceram, e continuam a acontecer.
Felizmente, a diretora optou por dar voz a PMs e moradores dos locais onde aconteceram as chacinas. Há imagens da revolta que se seguia a cada uma delas. E também dos familiares que perderam irmãos, filhos, parentes. São depoimentos emocionantes de pessoas que até hoje reclamam uma presença do estado, para que sejam ao menos indenizadas por aquilo que lhes foi tirado pela mão violenta desse mesmo estado.
No entanto, é possível sentir no filme a presença dos debatedores que estavam na pré-estreia, embora eles não apareçam. Quem conhece, ao menos de artigos em jornais, seu trabalho, sente que a levada do filme tem o olhar deles ao lado da diretora, que os usou como consultores.
Mas o grande personagem do filme é o X9 Ivan. Mérito da diretora, que se acercou dele e o colocou quase como narrador onisciente das chacinas e do que há por trás delas,
X9, para quem não sabe, é a gíria para o caguete, aquele sujeito que por dinheiro trabalha como dedo-duro para a polícia. E Ivan, confessadamente, participou de mais de 300 ações.
Curiosamente, o mesmo X9 acabou se voltando contra os PMs que lhe pagavam propina. Preso, resolveu contar tudo o que sabia, e seu depoimento foi fundamental para mostrar como, por que e quais foram os autores da chacina de Vigário Geral.
Ivan é um grande personagem, com seu cinismo forjado na vida real do Rio de Janeiro, dos arregos, dos acertos entre policiais e traficantes, do dinheiro, do tráfico de drogas e armas. O cinismo que é talvez a principal carcaterística de nossa sociedade, que se diz indignada com a violência, embora aplauda a polícia quando agride os "pivetes", os ladrões, os traficantes, desde que pretos e pobres. Alias, isso fica explícito no filme.
O filme tem todos os méritos, menos um. Direção, edição, trilha (de Tim Rescala), depoimentos e reconstituições dramatizadas são o mérito, que confirma o acerto da premiação do filme e da diretora.
Mas há uma falha, a meu ver indesculpável, e que talvez tenha passado batida pela montagem. Logo no início do filme, com imagens reais da chacina de Vigário Geral, há vários depoimentos de moradores, colhidos no chamado calor dos acontecimentos. E uma mulher culpa o governador Brizola por tudo aquilo. Que a moradora, desinformada e transtornada pelos acontecimentos dissesse aquilo é aceitável. Mas a cena ficar no filme 21 anos depois, não.
Brizola teve seus defeitos, mas foi em seu governo que a polícia perdeu a permissão do estado de entrar nas casas dos pobres sem mandado. Graças a isso, Brizola ganhou a fama de protetor de bandidos (quando ele protegia os pobres - o que faz parte do cinismo social que eu disse antes, "pobres e pretos são bandidos") e caiu em desgraça com a classe (Idade?) média, que o demonizou.
Também nos dois mandatos de Brizola, o comandante da Polícia Militar do Rio foi o coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, por muitos considerado o melhor oficial da PM de todos os tempos.
Por isso, ganharia o filme se a cena fosse cortada.
Mas À Queima Roupa é um filme que deve ser visto e debatido. Deve mesmo ser usado como ferramenta para amplas discussões, não apenas no Estado do Rio, já que o problema da violência policial é nacional, embora o Rio, segundo pesquisa, tenha conquistado o nada cobiçado troféu da Polícia Mais Corrupta do Brasil.
O filme estreia no Rio no dia 16 de outubro agora, quinta-feira.
NOTA: Como infelizmente é de se esperar de um filme com a qualidade e a temática de À Queima Roupa, ele precisa de apoio para uma distribuição como merece no Brasil. Confira como você pode colaborar aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UgbWBR0ffT8
OBS: Não dou links para a mídia corporativa porque eles também não nos linkam quando nos citam.