Da jornalista Dorrit Harazim, no Globo.
Dias atrás, o New York Times presenteou seus leitores com a história do cidadão espanhol Martín Zamora e de seu novo modelo de negócio. Proprietário de uma funerária na cidade portuária de Algeciras, de onde se avista o Marrocos, logo ali na ponta africana do Mediterrâneo, Zamora tornou-se catador e repatriador de cadáveres. Seus cadáveres são de migrantes anônimos que morrem afogados ao tentar a travessia, flutuam à deriva por semanas antes de aportar na costa espanhola e permanecem por meses no necrotério local por falta de quem os procure. Acabam enterrados em vala comum, sem identificação. Segundo a ONG Caminando Fronteras/Walking Borders, que desde 2002 atua nessa necrofronteira, 2.087desses seres humanos em busca de vida morreram ou sumiram naquelas águas.
O cidadão Zamora ampliou seu negócio funerário abrindo uma frente detetivesca. Com autorização das autoridades locais e gratidão do imã de Algeciras, ele persegue pistas ínfimas para devolver nome e identidade aos mortos. Um amarfanhado pedaço de papel encontrado em algum bolso pode conter um número de telefone quase apagado e abrir um leque de buscas; a logomarca fabril na roupa esgarçada de outro cadáver pode ser fotografada e divulgada nas redes sociais, como garrafa jogada ao mar. Quando o corpo está irreconhecível, um sapato, uma aliança, uma camiseta podem servir de fio da meada, explica o espanhol.
Com que finalidade, tudo isso? Para ele tentar localizar algum parente do morto, em algum país do além-mar, e oferecer entregar o ente perdido em domicílio, com esmero e respeito. Zamora é um benemérito? Não, cobra US$ 3.500 para embalsamar e transladar. Nos últimos anos já identificou e repatriou mais de 800 mortos.
Zamora então é vil, como os coiotes argentários que abandonam suas vítimas? Nem um pouco, seu trabalho é honrado, e as famílias que podem pagar agradecem por poder encerrar de forma digna a incerteza do luto.
Na verdade, o cidadão Zamora pode ser descrito como testemunha consciente de seu tempo. Contou a Nicholas Casey, do Times, ter “a sensação de que dentro de alguns anos — 30, 40, 50 anos, não sei quantos —as gentes do futuro olharão para nós um pouco como monstros. Vão nos ver como monstros porque saberão que deixamos as pessoas morrerem deste jeito”.
Disse tudo, e vale como reflexão para esses dias de encerramento da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid-19 no Senado. Não será preciso aguardar décadas para “gentes do futuro”, no Brasil, saberem que deixamos mais de 600 mil pessoas “morrerem deste jeito”. É esperado que a culpa dos principais responsáveis pela orfandade em massa nas famílias brasileiras esteja dissecada no relatório final prometido para terça-feira. As ignomínias, baixezas, pulhice e desdém para com a vida alheia estarão tipificados na forma de crimes penais e devem levar ao indiciamento de ao menos 40 pessoas, além do predador-chefe, Jair Bolsonaro.
A inação cúmplice por parte de entidades como o Conselho Federal de Medicina, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, na figura de seu diretor-presidente Paulo Rebello Filho, os Ministérios Públicos e Legislativos estaduais, vários ministérios e secretarias coniventes, a deliberada experimentação com humanos da operadora Prevent Senior, médicos e servidores públicos corrompidos — todos, em conjunto, fizeram o Brasil sangrar. A extensão do material coletado vai muito além do que pôde ser compartilhado ao longo das arrastadas sessões do horror praticado, transmitidas ao vivo. Espera-se que o texto do relatório final seja cirúrgico, claro e sem rebusques verbais de indignação. O documento terá peso histórico para a República, para consulta das “gentes do futuro”.
Além disso, servirá como retrato parcial da Presidência de Jair Bolsonaro — o conjunto da obra de destruição do país pelo ex-capitão continua em aberto até 2022. Até porque trata-se de um delinquente em série, que se afirma na reincidência — seja na rejeição continuada e ostentatória da vacina contra a Covid-19, seja no descumprimento metódico de obrigações constitucionais. A forma por ele escolhida para governar não mudará: está assentada no irracionalismo, na idealização do conflito e da violência e no desprezo à livre circulação de ideias. Para quem, até agora, se considera apenas testemunha involuntária da delinquência bolsonarista, vale lembrar o espanhol Zamora: o que fazer para também não sermos considerados monstros no futuro?
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