Com Bolsonaro, a Amazônia só é perigosa para quem a defende e não para garimpeiros, grileiros, traficantes e empresas de commodities
Assassinato cruel do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips escancarou de vez a realidade amazônica sob Bolsonaro: uma terra sem lei nas mãos de traficantes de drogas, armas, garimpeiros, madeireiros e todo tipo de gente que se aproveita da "licença para matar" do presidente para avançar sobre as terras indígenas.
Bolsonaro pensa que indígenas (e quilombolas) são vagabundos (logo ele...), têm terras demais e devem ou se integrar à sociedade branca ou sofrer as consequências disso numa realidade de capitalismo selvagem em seus estertores.
Pensa também que quem os defende é comunista que quer atrapalhar a vida (encher o saco, na linguagem presidencial) dos empreendedores da área: garimpeiros, grileiros, traficantes e empresas de commodities, todos ilegais em terras indígenas ou quilombolas.
Publico a seguir trecho de um artigo do professor Luis Fernando Novoa Garzon, publicado originalmente no site Amazônia Real, sobre o assunto:
Máfias territorializadas na Amazônia e a agenda anti-indígena de Bolsonaro: a mão e o gatilho
Depois de vidas inteiras dedicadas inteiramente aos outros, sobram fragmentos, vestígios e remanescentes humanos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Restos é o que nos tornamos, os que ficamos no mesmo intento. Sim, fomos todos emboscados, alvejados, queimados, esquartejados. Agora, somente juntando nossos cacos e os cacos desta história de horror normalizado é que vamos poder nos fazer inteiros de novo.
Entregar e identificar os corpos após confissão e localização dos restos mortais por parte de um dos executores, é isso que apresentam como o desfecho exitoso da “Operação Javari”? A Polícia Federal, seguidamente decapitada para se subordinar aos arbítrios palacianos, trouxe a público o que sobrou dos corpos como se sua missão estivesse cumprida. Desaparecidos, não, encontrados. A pressa em encerrar o caso é elucidativa. Os assassinos agiram sozinhos, sem mandantes nem organização criminosa envolvida, advogam sem pudor os investigadores. Sabe-se, contudo, que até oito pessoas tenham se alternado entre a emboscada, a execução, o desfiguramento e a ocultação dos corpos – o que pressupõe premeditação conjunta e divisão de tarefas. Tal condição é mais que suficiente para caracterizar uma organização criminosa: animus associativo de grupo movido por fins criminosos particulares e/ou de terceiros.
Nos dias em que Bruno e Dom ficaram desaparecidos ou ocultados, o mentor-mor da escalada de invasões, intrusões e assassinatos nos territórios indígenas, ponteando o avanço da mineração e do agronegócio, se esperançou no sumiço. “São dezenas de milhares de pessoas que desaparecem todo dia”, então porque preocupar-se apenas com “esses dois?”, redarguiu o presidente destilando seu cinismo de praxe. Seria mais simples para sua base de sustentação na Amazônia se o caso se convertesse em uma fatalidade anônima.
Logo que percebeu que a tese não se sustentaria, o mandatário passou a culpabilizar as vítimas pela “aventura” em “área extensa e perigosa”. Não é o meio físico que determina um maior ou menor nível de riscos e sim as dinâmicas socioterritoriais que vão sendo autorizadas e legitimadas. A Amazônia não parece nada perigosa para garimpeiros, grileiros, pistoleiros e empresas de commodities que vão na sua cola. É perigosa, sim, para quem a defende. A cada declaração presidencial e a cada projeto de lei, medida provisória, portaria e instrução normativa encaminhados pelo Executivo, são criadas expectativas de pilhagens adicionais da Amazônia, ficando marcados para morrer, de alma e de corpo, seus povos e comunidades tradicionais.
O avalista dos algozes disse ter convicção de que se Bruno e Dom tivessem combinado antes com a Funai, nada disso teria ocorrido. Marcelo Xavier, o testa de ferro (ou de ouro?) colocado à frente do órgão, falseia em coro: “É importante que as pessoas entendam que quando se vai entrar em uma área dessas, existe todo um procedimento”. Quer dizer que, se a “nova Funai”, convertida em algo similar a um Escritório do Crime Ambiental Organizado, fosse avisada, ela seguraria as mãos assassinas de seus pares?
A Funai, quando era algo parecido com uma agência pública, destinada a criar uma interface dialógica e de construção conjunta de políticas públicas territoriais junto aos povos indígenas, com todos seus limites e contradições, tentava proteger ou pelo menos não facilitava intrusões, nem se alinhava às pressões de todas as ordens sobre seus territórios.
Na ponta da linha, as confissões dos pescadores são espetacularizadas, enquanto se obscurece os que controlam o carretel, isto é, o planejamento da execução seletiva em dia, horário e local determinados. Alcançado o barco em que seguiam Bruno e Dom, no rio Itacoaí, afluente do Javari, ninguém ouviu a troca de tiros. Caçada matutina, vá saber quem a pratica.
O entrelaçamento das atividades ilícitas no entorno e no interior das terras indígenas é de alto interesse das atividades lícitas baseadas na extração de recursos naturais. Assim como o desinvestimento e sucateamento das empresas públicas abrem caminho para privatizá-las, as pressões descaracterizadoras do tráfico e do garimpo abrem flancos para novas apropriações e espoliações.
Enquanto pelados, sem eira nem beira, confessam seus crimes, quem fica nu é o Rei. Quem enxergar, e contar o que viu, viverá?
Leia mais no Amazônia Real.
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