Com rara felicidade, o jornalista Luis Nassif deu o tom do show de Chico 'Que tal um samba?', com a participação pra lá de especial de Monica Salmaso.
Do Nassif, no GGN:
No show de Chico, o reencontro com o país que já foi
Foi o maior show de Chico Buarque que assisti, com a participação majestosa de Mônica Salmaso. Foi um reencontro amoroso com o Brasil, através da seleção de composições de várias fases de Chico, cada qual impregnando a história de um público sedento de Brasil, que lotou o teatro.
Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil, que reagiam entusiasticamente a cada música, como para espantar os demônios que já apossaram do país conspurcando o verde e amarelo com suas caras de zumbis abobados, saindo dos porões do inferno.
Passou pelo show grande parte do repertório intemporal de Chico. Mas o momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretaram “Maninha”, a música que melhor antecipou o que se passaria com o Brasil.
A letra narra a história de dois irmãos, após o abusador ter entrado em suas vidas, a saudade da vida perdida, a esperança de um dia ele ir embora.
Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas cançõesSe lembra quando toda modinha falava de amor
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegouSe lembra da jaqueira
A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mimOs passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmimSe lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisouSe lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciouMas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltarEstava ali, o Brasil que começou a ser ensaiado a partir do “mensalão”, que se consolidou com a Lava Jato, o país do ódio, da destruição do adversário, tratado como inimigo. Até que o abusador tomou conta de tudo, as milícias conquistaram o poder, exterminando doentes, índios e abandonando crianças, destruindo sistemas de ensino, redes de proteção social.
A música aumentou em vários graus a emoção que já cobria a plateia. Não foi necessária nenhuma explicação, nenhum grito de guerra, mas apenas a solidariedade silenciosa de irmãos que se vêem libertados do abusador. E, na saída, a dura realidade batendo de volta. Se um dia ele vai embora, prá nunca mais voltar, não será por agora.
O abusador não é a figura caricata, pornográfica de Bolsonaro e seus filhos, da fada madrinha Michele, com suas maçãs envenenadas de manipulações religiosas, nem a bruxa Damares medindo o dedo de curumins enjaulados.
O abusador, agora, está em cada esquina, depois que uma campanha odiosa de mídia abriu os túmulos, permitindo que os zumbis escapassem das profundezas e invadissem definitivamente a vida brasileira.
É pior que nos tempos da ditadura. Na ditadura você encontrava alguns delatores no seu entorno, mas era como se os porões fossem segregados da sociedade, permitindo a honestos pais de família fingir que não ouviam os gritos dos torturados pelos amigos de Bolsonaro.
Agora, não. O espectro do abusador entrou na cabeça da velhinha rezadeira, do ruralista alucinado, normalizou a atuação dos assassinos reunidos em Clubes de Atiradores e Caçadores, transformou jornalistas em delatores – alguns deles, agora, tentando refazer o caminho de volta à civilização. Fez com que a sobrinha pia, que ia todos os domingos na missa, passasse a desejar a morte de esquerdistas, petistas, comunistas ou qualquer ista injetado em sua cabeça. Jogou no mesmo ambiente médicos imbecilizados, arruaceiros de periferia, vocações assassinas esperando a primeira oportunidade para cumprir a sua sina.
Definitivamente, o abusador não foi embora. Será um árduo trabalho empurrá-los de volta ao túmulo, porque não tem cara, não tem RG, é um sentimento amargo, pútrido, plantado por anos na cabeça do país, como um ectoplasma de Freddy Krueger.
Será uma dura caminhada, mas, pelo menos, sabemos o caminho. E as migalhas de pão jogadas pela estrada, para encontrar o caminho da volta, são as canções de Chico, Milton, Caetano, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Angelino de Oliveira, Adoniran.
Afinal, um país que construiu a mais bela música do planeta, haverá de encontrar forças para recuperar as lembranças das fogueiras, dos balões, dos luares dos sertões, e, em um ponto qualquer do futuro, voltar a ter orgulho de si.
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