O Dono da Tabacaria chega-se à porta. O movimento está fraco. Para não se entediar procura por algum acontecimento, ver se vem algum cliente.
Mas há apenas uma menina comendo chocolate gostosamente, como sabem fazer as crianças, lambuzando-se toda, chupando os dedos para não perder nada e depois secando-os na roupa.
As calçadas vazias. Poucos carros. O movimento está mesmo leitoso numa tarde particularmente quente.
Ele segue procurando por algo, quando o vê: como sempre, na janela do pequeno prédio em frente, concentrado no que escreve. Há boatos de que seja um escritor. Mas há quem o diga engenheiro. Fato é que ele nunca foi à Tabacaria em todo o tempo que mora ali.
Mas quem o conhece é o Esteves, que está se aproximando.
— Bom dia — diz o Esteves.
— Bom dia — responde o Dono da Tabacaria.
Entram. O Esteves faz seus pedidos e o Dono da Tabacaria tenta matar sua curiosidade, enquanto o atende.
— Estava a pensar no seu amigo, o do outro lado da rua, do prédio em frente, o poeta, ou engenheiro, não sei como devo me referir a ele.
— Fernando Pessoa?
— Não é Álvaro? Outro dia um freguês me disse que ele se chama Álvaro e é engenheiro.
— Coisas de poeta... Quem o conhece bem — se é possível falar assim — é o dono da leiteria ali à frente, o Julio Trindade, conhece-o? Diz que é um homem econômico nas palavras, amante da rotina e da aguardente. Pois o Trindade diz que todo dia pela manhã, sem faltar um, ele dirige-se ao balcão e diz: “Dê-me 7.”
— Sete?!
— Esse “7” é um copo de vinho tinto 611 que custa 70 centavos, ou 7 tostões.
— E diz apenas isso: dê-me 7? Curioso.
— No começo da noite ele é mais falante e diz "2, 8 e 6".
— Mania por números... coisa de engenheiro...
— 2 é de dois tostões, uma caixa de fósforos. 8 é de oito tostões, um maço de cigarros Bons. E 6 de seis tostões de um cálice de conhaque Macieira.
— Curioso.
— Põe cigarro e fósforos no bolso, vira o cálice num só trago, então tira uma garrafinha preta que sempre guarda na pasta e entrega ao Trindade, que logo a devolve já com rolha. E cheia de aguardente. É o estoque para uma noite.
— Então estão certos os que dizem que bebe muito.
— Sim, mas nunca o vi bêbado. Às vezes um pouco "alegre", mais falante, até me cumprimenta pelo nome: ó Esteves! Outras, passa de cabeça baixa, apressado, como se o chão fugisse sob seus pés. O que é mais estranho é que às vezes se refere a si mesmo como se falasse de outra pessoa. Ele diz "o Fernando fez, ou falou, ou escreveu" em vez de dizer que foi ele quem fez, falou ou escreveu.
— Coisas de poeta, como o senhor diz.
— Uma vez me disse “Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.” Achei tão curioso que anotei.
— Faz sentido. Mas não faz bem à saúde. Pode lhe causar uma cirrose ou uma pancreatite, coisas que o matam.
— Mas se é o preço para a poesia dele... O livro que lançou, Mensagem, venceu o prêmio Antero de Quental.
— Ah, então é um poeta premiado!... Mas aqui estão suas encomendas, senhor Esteves.
Após fazer o pagamento, os dois se dirigem à saída, o Dono da Tabacaria fazendo as honras. Já na rua, Esteves se despede do Dono da Tabacaria e faz um aceno de adeus para o homem na janela do outro lado da rua.
O homem se chega à janela e responde:
— Adeus ó Esteves!
"E o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu".
*Crônica publicada em parceria com a Revista Fórum.
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