Tudo poderia ter acabado ali, na primeira frase. No máximo na segunda. A primeira:
— Já vi que eu tenho alguma chance — ele disse, com um leve sorriso, entre cínico e simpático — ela que escolhesse.
Mas ela não entendeu e ele precisou repetir:
— Já vi que tenho chance...
— ?
— O cachorro... feio pra c@r@lh* seu cachorro...
Ela ficou desconcertada. Não sabia se ficava ofendida, em resposta ao risinho debochado e à fala depreciativa dele sobre seu cachorro, ou se, no fundo, concordava com ele. O cãozinho que era tão lindo no começo, quando filhotinho, cresceu e ficou assim com essa cara desconcertante, focinho e crânio numa mesma linha.
Aliás, esse era seu sentimento também em relação ao antigo namorado, Evandro, uma gracinha no início, mas depois e sempre imaturo, sem querer se responsabilizar por nada, uma eterna criança. Namoraram dois anos, até que ela se encheu. Ficou o cachorro.
Lembra que eu disse lá em cima que tudo poderia ter acabado na primeira frase, ou na segunda? Prepare-se para a segunda. Primeiro a preparatória:
— Como é o nome?
— Marcela.
A segunda:
— É fêmea?!...
— Ah, você perguntou do cachorro... Não, é macho. Justin Bieber.
— Que gracinha! Amigão!
E ele se pôs a fazer carinho no Justin Bieber, que sempre foi de poucos amigos, mas com ele, estranhamente, rebolava, abanava o rabo.
—Sempre o vejo com seu namorado...
— Não é namorado... nem marido...
— Irmão?
— Passeador... O Justin é muito ativo, precisa de exercício, e eu não tenho tempo e...
Ele interrompe:
— Se quiser eu passeio com ele. Tenho tempo livre. Gosto de andar, correr, me exercitar...
Ela estava desconcertada com aquele cara à sua frente, que não parava:
— Aonde você estava indo? Só passeando?
— Não, eu ia comprar ração pra ele na Pet.
— Posso ir com você? Me deixa levar o Amigão na coleira?
Ela, num gesto automático, passou a guia da coleira para ele e observou os dois irem à sua frente, como se fossem dois antigos e grandes amigos, saltitantes e alegres.
Mais uma vez Marcela não sabia como agir, nem mesmo como estava se sentindo. Era um misto quente de desconcerto e alegria. O cara era estranho — era, e muito —, mas parecia boa gente, e gostava do Justin, se comprometeu a passear com ele... Será que falava sério?
Na saída da loja, com o pacote da ração na mão, ele a convidou para comerem um sanduíche no barzinho da esquina, pet friendly. Finalmente ela conseguiu saber seu nome: Pedro.
O namoro dos dois começou nesse dia e a expressão pet friendly era uma das mais usadas por ele. Só aceitava ir a lugares em que o Amigão (sempre chamava Justin Bieber assim) pudesse ir junto.
Aliás, quase tiveram uma primeira briga naquele barzinho, no primeiro dia, quando ele partiu um pedaço do filé de seu sanduíche e lançou para Justin, que o traçou em segundos e queria mais.
Ela reagiu, pediu que não fizesse aquilo, que Justin só comia ração, mas ele insistiu, deu mais um pedaço de carne para o Amigão, "para isso eles têm os caninos, rasgar a carne, eles não servem de nada com as rações".
Iam à praia, e ele só queria ir à praia do Diabo ("é pet friendly"), onde ficava arremessando longe uma bolinha de borracha para o Amigão correr e trazer satisfeito da vida. Ela nunca vira Justin Bieber tão feliz. Só faltava cantar...
Mas ele não tratava bem apenas ao cachorro. Trazia sempre presentes para ela, era carinhoso, gentil, atencioso. Especialmente nas horas em que o cachorro estava dormindo.
Tão diferente de Evandro, que lhe dera Justin Bieber, um eterno adolescente, que só queria saber de surfar, não pensava em responsabilidades ou futuro, porque não precisava — o pai era banqueiro.
Estavam separados há dois anos, mesmo tempo que haviam namorado. No entanto, parecia que havia séculos... Até que...
Um dia ela ouviu uma voz conhecida chamar seu nome. Olhou para trás e confirmou: era Evandro. Mas ele estava de terno, todo alinhado. Foram tomar um café.
Difícil foi contar a Pedro no outro dia. Como dizer a ele que Justin Bieber, seu Amigão, estava agora num novo lar: o sítio de Evandro em Saquarema? Passaram o dia juntos, depois do café. Evandro lhe contou como estava sua vida, agora que trabalhava no banco ("Mas você não deveria estar lá?", ela. "São as vantagens de ser filho do presidente", ele).
Ela o achou mais maduro, mas ainda com o espírito alegre de antes, que sempre a encantara. Numa hora ele perguntou pelo cão. Quando ela disse que ele estava bem, embora o apartamento fosse pequeno, se ela morasse numa casa, "cachorro precisa de espaço"...
Foi quando ele falou do sítio, se ela não queria conhecer... As coisas foram acontecendo e, quando ela viu, estavam os três chegando ao sítio em Saquarema, poucas horas após terem se reencontrado depois de dois anos separados.
Pedro deveria ter entendido logo de cara que havia ou poderia haver algo mais ali, além do "roubo" (ele sentiu assim) do Amigão. Mas estava tão abalado com a perda do amigo que engoliu em seco e seguiu a vida.
Mas o namoro com Marcela não era mais a mesma coisa. Ele sentia que os três formavam uma família. Que já não havia mais.
Um mês depois, num sábado pela manhã, após não terem se encontrado na noite anterior, Pedro recebeu uma ligação de Marcela.
Em resumo, ela lhe disse que o Amigão estava causando problemas no sítio, brigava com os outros cachorros, não havia se adaptado.
— Não quer ficar com ele pra você? É só pegar no sitio.
— Claro! Claro que eu quero! Vamos lá?
— Eu já estou aqui — ela disse.
Ele compreendeu tudo.
Pedro parou o carro diante do sítio de Evandro em Saquarema, deixou a porta aberta e o motor ligado. Não pretendia demorar. E gritou:
— Amigão! Amigão!
Latidos, ganidos, e de repente o Amigão vem correndo, pula sobre ele, rebolando e abanando o rabo de felicidade, e já salta para dentro do carro, como gostava de fazer, indo para seu lugar no banco de trás.
Marcela apareceu com Evandro.
— Não quer entrar?
Pedro sorriu:
— Não, aí não é pet friendly pro Amigão.
Ela sorriu. Sempre o achou assim meio desconcertante, desde o dia em que se conheceram.
O amor tem dessas coisas.