Um dos principais pensadores latino-americanos da atualidade, tendo participado como vice do governo de Evo Morales, que deu voz ao povo boliviano, Álvaro Garcia Linera pensa que vivemos o interregno gramsciano com a crise do neoliberalismo, em que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer.
Talvez por sua experiência prática no governo da Bolívia, Linera não deixa de opinar sobre o que deve ser feito pelos governos de esquerda para impedir o efeito pendular e evitar uma volta da extrema direita em países com governos de esquerda como o Brasil.
Linera deu uma ótima entrevista ao Jacobin, de que publicamos trechos a seguir, com tradução de Juliano Medeiros.
No fundo, como ocorreu nas décadas de 30 e 80 do século XX, o que vemos é o declínio cíclico de um regime de acumulação econômica (liberal entre 1870 e 1920; de capitalismo de Estado entre 1940 e 1980; neoliberal entre 1980 e 2010), o caos que esse ocaso histórico gera e a luta para estabelecer um novo e duradouro modelo de acumulação-dominação que retome o crescimento econômico e a adesão social.
Diante disso, o progressismo e as esquerdas não podem adotar uma postura condescendente, tentando agradar a todos os setores sociais. As esquerdas saem de sua marginalidade no tempo liminar porque se apresentam como uma alternativa popular ao desastre econômico causado pelo neoliberalismo empresarial; e sua função não pode ser a de implementar um neoliberalismo com “rosto humano”, “verde” ou “progressista”. As pessoas não saem às ruas e votam na esquerda para enfeitar o neoliberalismo. Elas se mobilizam e mudam radicalmente suas aderências políticas anteriores porque estão cansadas desse neoliberalismo, porque desejam se livrar dele, pois enriqueceu apenas algumas famílias e algumas empresas. E se a esquerda não cumprir isso, e conviver com um regime que empobrece o povo, é inevitável que as pessoas mudem drasticamente suas preferências políticas para soluções de extrema direita que oferecem uma saída (ilusória) ao grande mal-estar coletivo.
As esquerdas, se quiserem se consolidar, devem responder às demandas pelas quais surgiram e, se quiserem realmente derrotar as extrema direitas, precisam resolver de maneira estrutural a pobreza da sociedade, a desigualdade, a precariedade dos serviços, a educação, a saúde e a habitação. E para poder realizar isso materialmente, precisam ser radicais em suas reformas sobre a propriedade, os impostos, a justiça social, a distribuição de riqueza, a recuperação dos recursos comuns em favor da sociedade. Abrir mão desse caminho alimentará a lei das crises sociais: qualquer atitude moderada diante de uma crise grave fomenta e alimenta os extremos. Se as direitas fazem isso, alimentam as esquerdas; se as esquerdas fazem isso, alimentam as extrema direitas.
Então, a maneira de derrotar as extrema direitas, reduzindo-as a um nicho – que continuará existindo, mas já sem alcance social – está na expansão das reformas econômicas e políticas que se traduzam em melhorias materiais visíveis e sustentadas nas condições de vida da maioria da sociedade; numa maior democratização das decisões, numa maior democratização da riqueza e da propriedade, de modo que a contenção às extremas direitas não seja apenas um discurso, mas se apoie numa série de ações práticas de distribuição de riqueza que resolvam as principais angústias e demandas populares (pobreza, inflação, precariedade, insegurança, injustiça…). Porque – não se pode esquecer – as extremas direitas são uma resposta, pervertida, a essas angústias. Quanto mais você distribui a riqueza, certamente mais afeta os privilégios dos poderosos, mas eles vão ficando em minoria em torno da defesa raivosa de seus privilégios, enquanto as esquerdas se consolidam como as que se preocupam e resolvem as necessidades básicas do povo. No entanto, à medida que essas esquerdas ou progressismos se comportam de maneira medrosa, hesitante e ambígua na resolução dos principais problemas da sociedade, as direitas extremas crescem mais, e o progressismo fica isolado na impotência da decepção. Portanto, nestes tempos, as extrema direitas são derrotadas com mais democracia e maior distribuição de riqueza; não com moderação ou conciliação.