Estava dando o rolezinho habitual do peripatético louco do supermercado, com a mente vazia, apenas de olho nos corredores e gôndolas para encontrar os produtos que buscava, quando se deu o encontro entre duas senhorinhas. Quero dividir com vocês como esse inusitado encontro demonstra o descompasso entre corpo e mente em que vivemos.
Assim como todo dia de manhã quando acordo e vou ao banheiro tem um velho olhando pra mim no espelho, às vezes a vida nos mostra, através da notícia da morte de um ator famoso, que nos acompanhou pela vida com as inúmeras vidas que interpretou; às vezes de uma querida, que na minha cabeça era sempre a menina sapeca dos Mutantes, que morreu aos 75 anos — mas, como, se tínhamos quase a mesma idade ainda outro dia, ela envelheceu tanto sem que eu me desse conta?
A
verdade é que, conforme envelhecemos, o corpo se deteriora de forma
muitíssimo mais rápida que o cérebro. Pensamos com um i9, mas nosso
corpo reage como um Pentium 5 ou inferior — algumas vezes, um 386...
Cada
vez mais somos memória RAM, a matéria volátil, a memória fluida. Aquela
que fica gravada no HD nos vai ficando cada vez mais inacessível,
porque não nos lembramos que a armazenamos, e nos surpreendemos quando
vemos aquela foto que batemos no réveillon e que juramos que jamais nos
esqueceríamos dela... Em que ano foi? Com quem estava? O que desejava que se perdeu na memória como os fogos no céu?
Abrir o Google Photos e pesquisar na linha do tempo pode ser uma caixa de Pandora...
Mas, tergiverso, eu
dizia do encontro das duas senhoras em meu rolezinho no supermercado.
Uma deve ter 70 e tantos. A outra, mais. Pois esta, a mais velha, ao se
encontrar com a mais nova, surpreende-se:
— Menina!!!! Você por aqui?!!!
E as duas sorriem, felicíssimas com o encontro das duas meninas em seus corpos de idosas. Tudo casca. Invólucro. Embalagem. Lá dentro, a substância é a mesma.
Coisas que os jovens só vão entender quando envelhecerem. Eles não fazem a mínima ideia de que aquela vovozinha doce deles, a imagem da pureza, aprontou muito na adolescência... Pior, nem desconfiam que aquela adolescente ainda está ali, dentro dela, e escapa às vezes, como no encontro das duas no supermercado.
Menina... Menino... Continuamos assim, embora o corpo diga que não.
Ah, esta dicotomia ainda há de matar-nos jovens de velhice!...