Arthur Lira para a ex-mulher: 'Onde não há corpo não há crime'


É um mistério. Uma denúncia de extrema gravidade contra o presidente da Câmara Arthur Lira feita por sua ex-mulher de que teria sido estuprada, agredida e ameaçada de morte por ele, publicada num site que pratica jornalismo sério — a Agência Pública —, não merece as primeiras páginas dos jornais nem as manchetes dos principais telejornais. Por quê?

A publicação da reportagem com a denúncia de estupro de Jullyene Lins por seu ex=marido Arthur Lira foi publicada exatamente há um ano, em 21 de junho de 2023. Logo em seguida foi censurada, a pedido de Lira, e assim continua até hoje.

Em setembro de 2023, uma reportagem da Pública que trazia um relato inédito de Jullyene Lins, ex-esposa do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, foi censurada a pedido do deputado federal. A 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu pela remoção da reportagem e confirmou a decisão em abril deste ano, quando julgou o agravo de instrumento interposto pela defesa do presidente da Câmara dos Deputados e manteve, por decisão unânime, a censura à reportagem.[Pública]

Pior, nem a censura a esta reportagem é discutida ou condenada pela chamada grande imprensa. É como se vivêssemos numa bolha de realidade paralela. Uma realidade que protege o presidente da Câmara de responder pelos crimes de que é acusado.

Não é uma denúncia vazia, da boca pra fora. Há documentos oficiais, boletins de ocorrência na delegacia, que comprovam as acusações. A denunciante, Jullyene Lins, foi casada durante 10 anos com Lira, é mãe de filhos dele, mas nada disso faz a chamada grande mídia se mover para dar voz às denúncias. Por quê?

O próprio fato de todas essas acusações (exceto a de estupro, revelada somente na reportagem de 21 de junho de 2023 da Pública) serem feitas há muito tempo sem consequência alguma para Lira, diz muito do poder desse homem e do machismo estrutural da nossa sociedade.

A "grande mídia" que deu destaque até à compra por Janja de uma gravata de grife para Lula numa viagem ao exterior, com o dinheiro dela, nada comenta não apenas sobre as acusações, mas também sobre a censura (logo eles que enchem a boca para falar em "liberdade de expressão"), a impunidade e os meandros da Justiça que tornam essa impunidade possível, especialmente se o acusado de crime é poderoso e homem — exceto se esse homem for o Lula, claro. 

 

A violência só revelada há um ano

 

Jullyene: “Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim: ‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora.” Foi quando o deputado Arthur Lira a teria puxado pelo cabelo e a violentado.


"Onde não há corpo não há crime"

 

A diretora-executiva da Pública, Marina Amaral, denuncia o "manto de silêncio" que cobre assuntos dos poderosos.

Publico a seguir o texto de Marina Amaral sobre as acusações contra Lira, com link para a completa reportagem de Alice Maciel na Pública, na esperança que a censura sobre ela seja retirada.

 

Colarinhos brancos, punhos sujos

Não são apenas crimes de colarinho branco que recaem sobre alguns parlamentares do Congresso Nacional. Para além da malversação de verbas públicas, com emendas direcionadas para aliados políticos, orçamentos secretos e propinas de lobistas, nosso representante máximo do Centrão – e presidente da Câmara dos Deputados –, Arthur Lira, prova que até acusações de crimes hediondos, como o estupro, são toleradas, sob um manto de silêncio, a depender da força do suspeito.

“Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim: ‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora.” Foi quando o deputado Arthur Lira a teria puxado pelo cabelo e a violentado. 

A cena chocante, que teria ocorrido em 5 de novembro de 2006, foi narrada pela ex-mulher de Lira, Jullyene Lins, à repórter Alice Maciel, que investigava a história desde o ano passado, quando revelou que Arthur Lira só havia reconhecido a paternidade de uma filha com doença rara, nascida fora do casamento com Jullyene, depois que a mãe entrou na Justiça por não ter recursos para pagar o medicamento da menina, então com 7 anos. Àquela altura, Jullyene, que foi casada dez anos com Lira, já havia dito à imprensa que ele a tinha espancado, com socos e pontapés, naquele 5 de novembro, e que depois a havia ameaçado de morte por ela ter denunciado a violência doméstica que sofria à polícia. 

Não havia, porém, falado da acusação de estupro, o que só fez agora, na reportagem publicada nesta quarta-feira, depois de estabelecida a confiança com a jornalista da Pública, mais de um ano depois do primeiro contato. “Eu aguentei isso esse tempo todo, eu guardei por 17 anos isso por conta dos meus filhos, por conta da minha família, a vergonha também, a gente se sente um lixo. Eu estou falando isso agora porque preciso tirar esse peso das minhas costas, não é para denegrir [sic] a imagem dele”, disse Jullyene ao revelar o alegado estupro.    

Mas a repórter Alice Maciel fez mais do que trazer as acusações de violência sexual narradas por Jullyene. Ela se debruçou sobre o processo judicial embasado na Lei Maria da Penha, movido a partir do inquérito policial aberto com o Boletim de Ocorrência lavrado por Jullyene na noite das agressões, em 2006. O BO foi publicado na reportagem, assim como o laudo de exame de corpo de delito, obtido pela repórter, que constatou “ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente” com “instrumento contundente”, oito hematomas nas regiões da lombar, glúteos, coxas, antebraços e pernas. 

O laudo do IML foi definitivo, assim como os depoimentos da mãe e do irmão de Jullyene e de duas funcionárias da casa, confirmando a agressão, para a delegada Fabiana Leão Ferreira indiciar Arthur Lira em agosto de 2007: “O exame de corpo de delito foi a prova material robusta, técnica, isenta de qualquer julgamento. Eu tinha prova material, era inequívoca, as testemunhas falavam de forma coerente, contavam a narrativa, os depoimentos eram verossímeis com o fato”, reafirmou 16 anos depois à Pública.

O processo, porém, levou nove anos para ir a julgamento, o que só ocorreu em setembro de 2015 no STF. Naquele momento, o deputado estadual que Jullyene havia denunciado em 2006 já tinha foro privilegiado, como deputado federal de segundo mandato. Também já era visto como homem de prestígio nos círculos do poder. Foi inocentado por prescrição e falta de provas, já que no decorrer do processo as testemunhas – e a própria Jullyene – voltaram atrás em seus depoimentos. O motivo: medo. Em 2008, Lira chegou a ser preso por coação no curso do processo, meses depois de o elo mais frágil – a babá que ouviu os gritos, viu o estado deplorável de Jullyene e chamou a mãe dela para socorrê-la – já ter voltado atrás no depoimento prestado à polícia. Alice tentou falar com a babá, como fez com peritos, policiais e testemunhas, mas foi alertada por pessoas próximas de que ela não falaria por ter muito medo. Já a retratação de Jullyene, abandonada por seu advogado depois que a esposa dele foi contratada pelo gabinete de Lira, pode ser resumida em uma palavra: medo, mais uma vez. Ao ameaçá-la para obrigá-la a retirar a denúncia, o atual presidente da Câmara lhe teria dito: “Onde não há corpo não há crime”, contou à repórter da Pública.

Lira não quis comentar as denúncias. Na reportagem do ano passado, sobre a filha doente que abandonou, ele se pronunciou: “Eu não tenho nada para falar, sou uma pessoa normal, que segue a minha vida, trabalhando e fazendo as minhas coisas. Sem falar que minha vida pessoal não diz respeito a ninguém”, afirmou. 

O deputado, tão cioso dos privilégios do cargo que ocupa, parece não ter consciência de sua responsabilidade como homem público nem do impacto social negativo que sua atitude e impunidade projetam em um país em que é corriqueiro o abandono dos filhos pelos pais e a violência física/sexual atinge mais de um terço das mulheres. 

Tendo a decisão do STF como escudo, tenta passar a borracha na história, sob a cumplicidade de todos os que se calam agora diante dos documentos e fatos gravíssimos revelados pela Pública. Entre eles, deputadas e deputados de A a Z – ou do Psol ao PL – e, inexplicavelmente, a imprensa tradicional, que não repercutiu a reportagem mesmo se tratando de suposto crime cometido pelo presidente da Câmara, o que seria um comportamento inadmissível por parte da mídia em qualquer país democrático. 

Meus parabéns à repórter Alice Maciel e a seu editor, Thiago Domenici, diretor da sucursal da Pública em Brasília, que persistiram juntos, com a mesma coragem, na apuração e revelação dessa história tão sintomática deste país de desigualdades e privilégios e tão inspiradora para os que acreditam no jornalismo independente de interesse público.

Jullyene Lins já se ofereceu para falar na Câmara dos Deputados para apresentar as provas que diz ter contra ele.


Contribua com o blog que está com você há 19 anos
PIX: blogdomello@gmail.com