Dia Mundial do escritor. 'Madame Bovary' no consultório de massagista esotérico-sexual

Hoje, 13 de outubro, um dia após o Dia das Crianças, é Dia Mundial dos Escritores, que são em parte aquelas crianças que deixam de ouvir e passam a contar histórias.

Para comemorar, publico a seguir dois capítulos de meu romance Madame Flaubert, que publiquei em 2013, pela Publisher. 

É a tentativa de transposição do clássico Madame Bovary, de Gustave Flaubert, feita pelo personagem Antônio C. para os anos de Fernando Collor na presidência.

Nestes capítulos, a Emma Bovary de Antônio C. vai ao consultório de Lauro F.

Boa leitura.

* * * * * 

 

20.
 

Lauro F. é químico, e trabalhou unicamente, desde que saiu da faculdade, na estatal Upabrás. Tem 52 anos, dois filhos, esposa, e uma vergonha enorme da vida que viveu até cinco anos atrás, quando se aposentou. Nesse dia, avisou à mulher que o marido, o cidadão exemplar e certinho, aposentava-se junto com o químico. Correria atrás de seus sonhos, fossem eles quais fossem — até isso era preciso descobrir, tantas concessões havia feito. Matriculou-se em todos os tipos de cursos: fotografia, gastronomia, teatro, magia, acrobacia, desenho, astrologia, teledramaturgia — onde conheceu o grupo de “roteiristas”. Procurou-se em várias terapias, muitas ao mesmo tempo: bioenergética, neurolinguística, psicanálise individual e de grupo. Visitou templos. Fez viagens e teve experiências esotéricas. Acabou, ao fim de tudo, montando em segredo — ninguém, nem sua mulher sabe disso — um pequeno consultório, numa pequena sala, num centro médico em Botafogo, onde se transformou em Ananda, por ele mesmo definido como um "massagista esotérico-sexual, que transforma as potencialidades erótico-religiosas em ação". Sua clientela é, em sua maioria, formada por mulheres de classe média, média alta e alta, casadas, idade entre 35 e 50 anos.

Madame B. é uma delas. E esta noite ela está particularmente tensa, necessitando da massagem de Ananda. Deveria ter ligado para Marina — aliás, o marido tem certeza de que ela já o fez. Mas, e a coragem? Como falar com Marina sem sentir-se humilhada, apequenada? Precisa dessa massagem. Amanhã pela manhã sim, já completamente refeita pelas mãos mágicas de Ananda, pegará o telefone e ligará para a casa dela. 

Com esses pensamentos, Ema entra no pequeno consultório de Ananda, decorado com aqueles objetos comumente encontrados em lojas de artigos indianos: imagens de Buda, Krishna, incensórios, cristais... Após tirar toda a roupa, cobrir-se com uma toalha branca e deitar-se de bruços sobre uma maca coberta por uma colcha com motivos orientais, ela busca relaxar, enquanto aguarda a entrada do massagista. Conta que, hoje, como das vezes anteriores, a massagem lhe devolva a tranquilidade e a firmeza necessárias para continuar suportando tudo. Tem uma confiança, mais que isso, fé, em Ananda. Que ele seja Lauro F. e faça parte daquele "grupo de bêbados e desocupados, que você chama de roteiristas" — na análise cruel que várias vezes externou ao marido -, madame B. não sabe ou suspeita — no que, aliás, não está sozinha. Nem à própria esposa Lauro F. informou sobre a existência de Ananda.

Uma música suave, o som de uma cítara, inunda o ambiente. Ananda entra, concentradíssimo, as mãos postas junto ao peito nu. A melhor maneira de descrever sua indumentária é associá-la a uma outra: veste-se, unicamente, com um fraldão de neném, com a estranha peculiaridade de um rubi — ou a imitação de um —, do tamanho de uma noz achatada, com aproximadamente cinco centímetros de diâmetro, encravado bem no fim da coluna cervical, um pouco abaixo, exatamente sobre aquele lugar em que você está pensando. Ele se aproxima de Ema e começa a emitir uns sons indecifráveis, como os de um mantra oriundo de outro planeta, enquanto retira a toalha branca, admira aquele corpo nu à sua frente e passa a massageá-lo.

— Ah, Ananda, sua massagem é divina! — madame B., sem ao menos se virar para certificar-se de que era o próprio. Se um estranho entrasse na sala e começasse a manuseá-la, ela provavelmente não notaria.

Ananda começa a massagear a bunda ainda rija de madame B.

— Quando eu passo as minhas mãos por essas suas duas montanhas, Ema, me sinto como um esquiador... um esquiador ferido que descesse suas montanhas de neve... Você tem o corpo tão frio!... E eu estou ferido e excitado, descendo suas encostas... e com meu sangue, que escorre do ferimento, vou esquentando seu corpo... lentamente... Lentamente a neve começa a se derreter... e o esquiador vai caminhando por suas costas... até o pescoço... e volta novamente aqui ao Muladhara Chakra, no fim da coluna cervical, para estimular a sua Kundaline, a energia feminina que distribui energia para todos os outros chakras... Por isso eu uso esse rubi aqui atrás... o rubi e o dourado são as cores da energia desse chakra...

— Você acha mesmo o meu corpo frio? — ela, sem se virar, nunca olhando para ele, como se aquela voz e aquelas mãos fossem parte de sua fantasia.

— O Muladhara Chakra se relaciona à vida sexual e à vida material... você se preocupa muito com um aspecto e abandona o outro... O meu trabalho é estimular esse aspecto abandonado, por isso o esquiador dá seu sangue para Kundaline... e a neve se derrete... e o corpo fica quente... 

 

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21.
 

Búzios nem sempre foi a agitação de agora, onde, só no Guia 4 Rodas, encontramos, entre hotéis — alguns com diárias de 1000 dólares — e pousadas, 84 opções diferentes de hospedagem. No final dos anos 60, início dos 70, Búzios era apenas uma vila de pescadores descoberta por uma pequena nata da alta burguesia. E pelos primeiros hippies.

Ali, naquela Búzios, as duas adolescentes, a morena e a loura, viviam seu paraíso particular. Marina só aceitava a viagem se os pais levassem a melhor amiga. Eles fingiam um certo desacordo, mas adoravam que Ema fosse, pois assim podiam aproveitar a cidade sem terem que se preocupar com a filha. A cocaína estava voltando a ficar na moda e os pais de Marina adoravam reunir os amigos em torno de uma bandeja de prata, onde carreiras de uma cocaína puríssima eram aspiradas. A filha indo com a amiga liberava-os. Elas saíam o dia inteiro e, quando estavam em casa, ficavam trancadas no quarto, fazendo eles não sabiam, nem queriam saber, o quê. O certo é que não incomodavam — e isso bastava.

Marina adorava aquelas temporadas em Búzios. Ema sempre inventava alguma coisa nova, e, dessa vez, o jogo era fingir que eram as únicas sobreviventes de um naufrágio. Passavam os dias nas praias desertas, e Ema, sempre no comando, jogava para o alto o biquíni, e obrigava-a a tirar também o seu, para que as duas ficassem inteiramente nuas. Então, elas mergulhavam juntas, brincavam nas várias e diferentes praias da cidade — umas com ondas, outras inteiramente mansas, quase uma piscina... —, lançavam ao mar garrafas com mensagens de amor secretas, e depois se estiravam na areia quente e brincavam de contar gaivotas, enquanto aguardavam, torcendo para que não chegasse nunca, um barco que as salvaria. A realidade só passava a existir para elas no momento em que chegavam em casa. Aí sim, era hora de disfarçar, porque os pais de Marina podiam desconfiar de algo — quando, na verdade, eles não lhes prestavam a mínima atenção.

É com esse sentimento, um mix de medo/suspense/prazer, que elas entram no quarto e fecham a porta. Marina sente-se inteiramente feliz. Ema joga o jogo — o que lhe resta fazer. Nunca na vida sentiu prazer em nada. Todos os seus dias — até conhecer Marina — haviam sido como um filme que se assiste sem envolvimento, falado numa língua incompreensível e querendo dizer qualquer coisa — todas as opções sempre desinteressantes. 

Com Marina não! Com ela, Ema pode disfarçar, ser o que não é, inventar personagens e viver uma vida cheia de emoções. Tímida, recatada, recalcada, complexada — esta palavra era muito usada na época, e como tinha significado para ela! —, Ema fazia-se forte, conquistadora, arrojada, destemida. Uma mulher de vanguarda! Ela, uma menina da Tijuca, com todas as conotações que isso trazia — o medo de ser chamada de careta, atrasada e, horror dos horrores, suburbana —, uma menina da Tijuca, sim, ela conseguia deixar uma menina da zona sul, uma riquinha da zona sul!, completamente na defesa, com medo dela, que era tão “despojada, mais moderna, mais livre” — e só ela sabia o quanto aquilo lhe custava em sacrifícios e falsificações internas.

Ao entrar no quarto, portanto, Ema sabe que deve jogar o jogo, e diz:

— Você trancou a porta? Olha que a tua mãe já tá desconfiando de alguma coisa...

— Só porque ela disse que a gente devia arranjar uns namoradinhos?... Ela só quer que a gente saia de casa, fique a noite fora... É só isso.

Eu não sei... E se a porta estiver aberta e de repente alguém entrar sem bater? — Ema diz, olhando os olhos de Marina, analisando a reação dela a cada palavra. Precisa fazer com que a outra fique com medo, é preciso que Marina tenha medo dela. Por isso, ao perceber que ela está razoavelmente tranquila, Ema dispara: E se todo mundo já estiver sabendo o que a gente faz aqui no quarto?

Ema atinge o alvo. Marina fica preocupada e começa a andar em direção à porta para verificar se está mesmo trancada. Ema excita-se com isso, seu sangue ferve como se estivesse com febre, e ela se intromete entre Marina e a porta, segura-a com força, subjuga-a, abaixa firmemente seus braços, prende o corpo dela contra o seu, e prossegue falando, enquanto encaminha aquele corpo, agora inteiramente sob seu domínio, para a cama, tirando a blusa que se intromete entre as duas, beijando aqueles peitos, que logo ficam rijos, a auréola com vários pequenos pontos intumescidos, como uma coroa de rainha, e depois, ajoelhada diante daquele corpo indefeso, abaixa e tira a saia, a calcinha, e beija e cheira aquele ninho louro que Marina tem entre as pernas...

— Ema, eu amo você tanto... Nunca vou amar ninguém na minha vida como amo você... Se você me abandonar, eu morro...

E é nisso que, agora, tantos anos depois daqueles dias em Búzios, enquanto Lauro F., ou melhor, enquanto Ananda massageia seu corpo, é nisso que Ema pensa, e novamente sente o sangue quente, o corpo vibrar. Vem, então, a certeza: não pode, de jeito algum, falar com Marina nesse momento, vivendo o que está vivendo, tendo que mentir sobre fechos e não contar nada sobre perdas. Vai ligar sim, para falar do colar, porque não pode deixar de fazê-lo, mas vai ligar o mais cedo possível, sete — não, seis da manhã! — porque sua intenção é encontrá-la ainda dormindo, quando, então, deixará recado com Lecy, a babá-governanta-mãe-de-plantão de Marina, que a acompanha desde que ainda era bebê.

— Menina, o seu corpo está fervendo! - diz Ananda, surpreso com o que ele supõe ser o efeito da própria massagem. Ema, que desde que perdera o filho encontrou a desculpa perfeita para não mais fazer o que nunca lhe deu prazer — transar com o marido —, sorri, saboreando o fato de ainda poder acender o vulcão — mesmo que falso —, como nos velhos tempos. Mesmo que hoje isso não sirva mais para nada, seja apenas uma cena sem ação, como uma velha fotografia esmaecida.

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Obs:

Se você se interessou pelo meu Madame Flaubert, ainda ha exemplares à venda na internet, basta pesquisar. Mas se quiser receber um exemplar autografado em sua casa, de qualquer lugar do Brasil, por R$60, escreva para mim em blogdomello@gmail.com.



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