Dr. Drauzio. Não apenas à vida. Precisamos falar sobre o direito à morte

Com as novas tecnologias é possível tratar doenças e prolongar a vida por um tempo que jamais seria possível anteriormente.

Mas essas mesmas tecnologias, o avanço da ciência com os modernos tratamento e medicamento trazem uma questão que não era posa antes: a do direito à própria morte.

Pode a pessoa decidir e assinar com testemunhas de que não quer ter sua vida prolongada a partir de certos parâmetros?

Em agosto passado o ator francês Alain Delon teve seu desejo de uma morte assistida atendido. Ele não queria mais viver nas condições em que se encontrava.

O Dr. Drauzio Varella, um dos mais respeitados e conhecidos médicos do Brasil, publicou em sua coluna da Folha uma reflexão sobre isso: o direito à morte. Como ele mesmo reconhece no texto, é "um tema controverso, mas a sociedade precisa enfrentá-lo".

 

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O que fazer quando a demência nos roubar a cognição?

E o que fazer nas fases mais avançadas, quando a cognição já foi para o espaço e o corpo se tornou um fardo insuportável? Manter uma pessoa inerte, trancada num mundo impenetrável, é o melhor que podemos fazer? Terminei com essas palavras nossa última coluna, neste espaço. Foi o tema de uma série sobre demências que acabamos de apresentar no Fantástico.

A faixa da população que mais cresce no Brasil é a que está com mais de 60 anos. Hoje, quando morre um tio com 70 anos, dizemos que morreu moço. Há pouco tempo, quem atingisse essa idade era considerado muito velho. Num livro do século 19, Machado de Assis se referiu a um homem de 50 anos como "velho gaiteiro". Em 1903, um jornal de Manaus noticiou: "Caminhão desgovernado invade casa e mata uma velhinha de 40 anos".

Todos querem viver muito, mas não a qualquer preço. Você, leitora, é tão apegada à vida que lutaria para mantê-la ainda que não conseguisse sair da cama, não reconhecesse os filhos e confundisse os netos com ladrões prestes a assaltá-la? E você, leitor, valeria a pena continuar vivo para passar o resto dos dias sem fazer ideia de quem são aqueles estranhos que trocam as suas fraldas e lhe dão comida na boca?

Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis escreveu: "A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana".

Em mais de 50 anos de atividade clínica, acompanhei alguns pacientes com quadros demenciais avançados. Quando a doença chega às fases finais, os familiares, exauridos pela tarefa de zelar por alguém que exige cuidados permanentes, concluem que a morte seria a solução mais humana.

Desejar a morte de uma pessoa querida, entretanto, gera sentimentos contraditórios, que fogem à racionalidade. Difícil admitir que desejamos a morte da própria mãe, do pai, de um dos irmãos ou do amigo com quem convivemos tantos anos. A reação mais comum é calar. Para quem suporta a carga de cuidados diários, rotina interminável quase sempre realizada por uma mulher, o dilema é: vão pensar que quero ficar livre do trabalho ou, pior, será que não quero mesmo?

Nesse momento, se apesar do sentimento de culpa um familiar pergunta ao médico por que não encurtar a duração daquele arremedo de vida, ouvirá que as leis brasileiras consideram a eutanásia um crime.

Está mais do que na hora de mudarmos essas leis. O Código Penal precisa atender às mudanças ocorridas nas sociedades modernas. Eu não quero de jeito nenhum vegetar num leito, sujeito à imprevisibilidade da visita da senhora com a foice, porque ela poderá me encontrar em condições indignas que ficarão gravadas para sempre na memória das pessoas que mais amo.

Nos tempos do Carandiru, ouvi de seu Araújo, um velho carcereiro: "Doutor, sabendo levar, a vida é uma festa". É verdade, mas toda festa uma hora acaba. Diante da possibilidade de perder a consciência no fim dela, preciso ter o direito de estabelecer as condições em que pretendo me retirar. Não quero ficar até entrar em coma alcoólico, dando trabalho aos donos da casa.

Enquanto tenho pleno domínio de minhas faculdades mentais, as leis devem me assegurar o direito de registrar em cartório as condições em que minha morte deve ser antecipada, por meios farmacológicos.

É um tema controverso, mas a sociedade precisa enfrentá-lo. É possível definir regras claras para que a vontade do declarante seja respeitada. Por exemplo: ele não quer continuar quando não reconhecer mais ninguém e perder o controle dos esfíncteres ou quando passar os dias mudo olhando para o teto ou quando estiver sem memória e precisar de uma sonda gástrica para não morrer de inanição.

Para os mais religiosos, que consideram a vida um dom divino que só pode ser confiscado pelo Criador, é importante não esquecer que concordamos com a doação dos órgãos de uma pessoa com morte encefálica. No entanto, o coração ainda pulsa e os pulmões trocam gás carbônico pelo oxigênio que a circulação leva para todas as células; só o cérebro morreu.

A eutanásia é aceita porque estabelecemos uma hierarquia entre os tecidos do organismo na qual o sistema nervoso central tem primazia sobre os alvéolos pulmonares e as células musculares do coração. Consideramos que o funcionamento do sistema nervoso central é o que nos confere a condição humana.

Qual a razão para não agirmos em respeito à mesma lógica quando a demência nos roubar a cognição?



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