Um dos melhores livros de contos que já li chamava-se A metáfora de Drácula, publicado em 1982 pela José Olympio (só percebi agora que o meu primeiro romance, Pedro Pedra, também foi publicado em 1982 – essa é uma coincidência intrigante). Agora, mais de quatro décadas depois, me aparece um outro livro de contos, O Amor tem dessas coisas, e outras, que é tão bom, ou melhor!, do que aquele. Por mero acaso, o novo livro é do mesmo autor: Antonio Mello (antes, ele assinava como Antonio Carlos de Mello).
Os contos do Mello têm a peculiaridade de não respeitarem muito as fronteiras literárias – entre a comédia e a tragédia, entre o conto e a crônica. Esse salutar desrespeito faz com que sua literatura também pareça filosofia, provocando perguntas que nos incomodam, até porque, muitas vezes, não têm resposta fácil. Prefiro chamar todos os textos desse livro de contos, embora os professores (eu também sou professor, mas tento fingir que nem sempre) digam que boa parte seria mais crônica do que conto. Crônica ou conto, Mello escreve ficção da melhor qualidade – se parece mais crônica, isto é, se parece muito real, é porque é melhor ainda!
Os títulos dos contos, grandes como os primeiros versos de poemas sem título, podem ser lidos isoladamente, como mini-contos poéticos. O título do primeiro conto, por exemplo – “Todo dia de manhã quando acordo e vou ao banheiro tem um velho olhando pra mim no espelho” –, remete àquelas histórias clássicas que tratam do espelho, como as de Machado de Assis e João Guimarães Rosa. Olhar-nos no espelho com toda a atenção, e não apenas para arrumar o cabelo ou tirar o pedaço de alface do dente, nos leva a de repente vermos um monstro – ou um velho que nos parece monstruoso, uma vez que nos reflete, mas não devia. Sim, não devia, se lá no fundo continuamos crianças inocentes (ou perversas, porque a inocência, concedo, é a primeira das grandes perversões).
O segundo conto – “O Cristo da Via Crucis e o Cristo Ostentação” – é mais uma crônica, admito. parte de um colégio interno do passado, com seu cortejo de pecados reprimidos, para melhor fustigar e chicotear os vendilhões dos templos atuais, com seu cortejo de pecados livres, leves, soltos e ricos, muito ricos, à custa do medo e da fé dos mais pobres. Fico feliz de partilhar não somente o ateísmo do autor, mas também sua raiva daqueles que falam de deus como se deuses fossem, para melhor explorar, expropriar e humilhar quem neles deposita sua confiança – e toda a sua parca poupança.
O terceiro conto – “A metamorfose de Kafka na menina em Ipanema” – combina a literatura densa, densa até o desespero, de Franz Kafka, com pipocas, artistas de rua, a rua Visconde de Pirajá, um casal discutindo, um dragão de mentira e uma menina de verdade. Quando o rosto da menina se torna “inteiramente” iluminado, nosso rosto, de leitores, também se ilumina, tornando aquela história mais do que prosaica numa história absolutamente linda. Mello, você já me “acusou” de piegas, mas nessa história você me superou – e me comoveu!
Será que vou falar de todos os contos? Acho que não vai dar, senão a apresentação do livro do Mello corre o risco de ficar maior do que o livro. Pulo então alguns textos e chego a “O peripatético louco do supermercado”. Esse é uma obra-prima, desde o título. “O louco do supermercado” seria um bom título para as crônicas de Stanislaw Ponte Preta, vulgo Sérgio Porto (ou seria o contrário?), em especial se fosse uma louca. Quando Mello acrescenta “peripatético” a esse título, nos remete à filosofia de ninguém menos do que Aristóteles, que ensinava a seus discípulos andando com eles sem parar. A junção da filosofia peripatética com a loucura e, ainda, com um supermercado que se visita, também sem parar, justifica que eu considere o texto uma obra-prima de literatura, de filosofia, de metaficção e, ainda, de autoficção! A frase final de “O peripatético louco do supermercado” nos remete, como um brinde, a uma das frases mais famosas de Gustave Flaubert, a respeito da sua personagem mais conhecida. Não dá para deixar de ler.
Da mesma maneira que o conto seguinte, sobre o Dia das Mães, não dá para pular. O tema não poderia ser mais piegas nem me doer mais, a mim que só dediquei um livro a minha mãe quando ela não podia mais ler a dedicatória. O final do conto, nos mostrando que o vento se encontra dentro do verbo “invento”, assim mesmo na primeira pessoa, funciona como uma lufada de assombros.
A história do conto-título, “O amor tem dessas coisas”, é maravilhosa, em todos os sentidos do adjetivo. Se fosse um filme, seria uma comédia tipo sessão da tarde, com direito a final feliz, ou melhor, a “the end” com musiquinha e tudo. Uma mulher recebe cartas apaixonadas de um admirador secreto chamado Amaro, mas a cada carta o endereço do remetente é diferente. O último endereço, ela e uma amiga descobrem, é do Cemitério do Caju. O que parece o CEP é, na verdade, a indicação de uma quadra e o número de uma sepultura. O que acontece quando a mulher se encaminha para a sepultura, tão assustada quanto curiosa? Ela encontrará Amaro (que podemos ler como Amar-o, ou como: o-Amar)? Vivo? Ou morto? Ou, nem morto, nem vivo?
Senhoras e senhores, é melhor eu parar essa apresentação por aqui – em parte, para não adiar a convivência da leitora e do leitor com os contos do Antonio Mello, mas, em parte, por egoísmo mesmo: quero curtir os demais contos sozinho.
Os contos do Mello têm a peculiaridade de não respeitarem muito as fronteiras literárias – entre a comédia e a tragédia, entre o conto e a crônica. Esse salutar desrespeito faz com que sua literatura também pareça filosofia, provocando perguntas que nos incomodam, até porque, muitas vezes, não têm resposta fácil. Prefiro chamar todos os textos desse livro de contos, embora os professores (eu também sou professor, mas tento fingir que nem sempre) digam que boa parte seria mais crônica do que conto. Crônica ou conto, Mello escreve ficção da melhor qualidade – se parece mais crônica, isto é, se parece muito real, é porque é melhor ainda!
Os títulos dos contos, grandes como os primeiros versos de poemas sem título, podem ser lidos isoladamente, como mini-contos poéticos. O título do primeiro conto, por exemplo – “Todo dia de manhã quando acordo e vou ao banheiro tem um velho olhando pra mim no espelho” –, remete àquelas histórias clássicas que tratam do espelho, como as de Machado de Assis e João Guimarães Rosa. Olhar-nos no espelho com toda a atenção, e não apenas para arrumar o cabelo ou tirar o pedaço de alface do dente, nos leva a de repente vermos um monstro – ou um velho que nos parece monstruoso, uma vez que nos reflete, mas não devia. Sim, não devia, se lá no fundo continuamos crianças inocentes (ou perversas, porque a inocência, concedo, é a primeira das grandes perversões).
O segundo conto – “O Cristo da Via Crucis e o Cristo Ostentação” – é mais uma crônica, admito. parte de um colégio interno do passado, com seu cortejo de pecados reprimidos, para melhor fustigar e chicotear os vendilhões dos templos atuais, com seu cortejo de pecados livres, leves, soltos e ricos, muito ricos, à custa do medo e da fé dos mais pobres. Fico feliz de partilhar não somente o ateísmo do autor, mas também sua raiva daqueles que falam de deus como se deuses fossem, para melhor explorar, expropriar e humilhar quem neles deposita sua confiança – e toda a sua parca poupança.
O terceiro conto – “A metamorfose de Kafka na menina em Ipanema” – combina a literatura densa, densa até o desespero, de Franz Kafka, com pipocas, artistas de rua, a rua Visconde de Pirajá, um casal discutindo, um dragão de mentira e uma menina de verdade. Quando o rosto da menina se torna “inteiramente” iluminado, nosso rosto, de leitores, também se ilumina, tornando aquela história mais do que prosaica numa história absolutamente linda. Mello, você já me “acusou” de piegas, mas nessa história você me superou – e me comoveu!
Será que vou falar de todos os contos? Acho que não vai dar, senão a apresentação do livro do Mello corre o risco de ficar maior do que o livro. Pulo então alguns textos e chego a “O peripatético louco do supermercado”. Esse é uma obra-prima, desde o título. “O louco do supermercado” seria um bom título para as crônicas de Stanislaw Ponte Preta, vulgo Sérgio Porto (ou seria o contrário?), em especial se fosse uma louca. Quando Mello acrescenta “peripatético” a esse título, nos remete à filosofia de ninguém menos do que Aristóteles, que ensinava a seus discípulos andando com eles sem parar. A junção da filosofia peripatética com a loucura e, ainda, com um supermercado que se visita, também sem parar, justifica que eu considere o texto uma obra-prima de literatura, de filosofia, de metaficção e, ainda, de autoficção! A frase final de “O peripatético louco do supermercado” nos remete, como um brinde, a uma das frases mais famosas de Gustave Flaubert, a respeito da sua personagem mais conhecida. Não dá para deixar de ler.
Da mesma maneira que o conto seguinte, sobre o Dia das Mães, não dá para pular. O tema não poderia ser mais piegas nem me doer mais, a mim que só dediquei um livro a minha mãe quando ela não podia mais ler a dedicatória. O final do conto, nos mostrando que o vento se encontra dentro do verbo “invento”, assim mesmo na primeira pessoa, funciona como uma lufada de assombros.
A história do conto-título, “O amor tem dessas coisas”, é maravilhosa, em todos os sentidos do adjetivo. Se fosse um filme, seria uma comédia tipo sessão da tarde, com direito a final feliz, ou melhor, a “the end” com musiquinha e tudo. Uma mulher recebe cartas apaixonadas de um admirador secreto chamado Amaro, mas a cada carta o endereço do remetente é diferente. O último endereço, ela e uma amiga descobrem, é do Cemitério do Caju. O que parece o CEP é, na verdade, a indicação de uma quadra e o número de uma sepultura. O que acontece quando a mulher se encaminha para a sepultura, tão assustada quanto curiosa? Ela encontrará Amaro (que podemos ler como Amar-o, ou como: o-Amar)? Vivo? Ou morto? Ou, nem morto, nem vivo?
Senhoras e senhores, é melhor eu parar essa apresentação por aqui – em parte, para não adiar a convivência da leitora e do leitor com os contos do Antonio Mello, mas, em parte, por egoísmo mesmo: quero curtir os demais contos sozinho.
Gustavo Bernardo é professor de teoria da literatura na UERJ, editor executivo da EdUERJ e autor de alguns ensaios, como A ficção de Deus, e alguns romances, como De volta a 1984.
"O Amor Tem Dessas Coisas, E Outras"
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